Sem Crônicas — Olhar
Você olha uma foto, passa a vista, capta a imagem. A imagem chega, sem nada mais, sem significado, não para. Não fica. Intempéries dos tempos modernos.
É assim porque com a vida e com a pressa, nos acostumamos a simplesmente passar. Passar pelas coisas, pelas próprias vidas. Deixar a vida escorrer por nós.
Eu me recuso.
Me recuso a não enxergar. Meu olho é meu grande órgão-coração, é minha doação para eu mesma. Me recuso a passar pela existência e deixar de ver tudo aquilo que é e poderia ser diferente.
Eu olho para a foto, a mesma imagem, a mesa, a foto, simples, cálida, parece pouco, mas contém muito, tanto que me proponho até a explicá-la.
A foto tem um quadro. Um quadro que por ironia, soltou o prego, caiu da parede da sala, e que me proponho, mais tarde, a reafixar. Carrega a frase no quadro, as palavras que vejo e repito baixinho, quando me sinto fraca.
Ao lado do quadro, a imagem de dois dos grandes motivos pelos quais eu acordo todos os dias. Contém o amor que sinto por eles. Momentos íntimos, únicos, quase secretos, que somente eu tenho acesso.
Contém o compromisso com a árdua labuta que me coube, a folha de papel com um artigo cientifico e uma aula acadêmica. Contém as gravações de dias difíceis, testemunhados e atestados em minutos de suor e desespero num intraoperatório, transformados em simples cinema, a que me proponho editar e gravar para um eu lá futuro, seja meu, seja de colegas.
A foto contém meus medos, meu terror pela morte, minha luta diária para lidar com ele e o desejo de sobreviver à esta disputa.
Contém um fio de presente, lindo, feito à mão por uma colega de escrita, sensível, que representa a rede de apoio necessária para conseguir escrever.
Contém a música, através de um outro presente, que me ajuda a trabalhar e a captar o som que me move e me ergue, quando preciso espairecer. Contém a tela, a tecnologia, esse monstro chamado internet, que dominou nossas vidas e que nos consome cada vez mais, tão precoce e tão dominante, que nem conseguimos processar tudo a que somos submetidos.
A imagem tem a imagem de um santo, um santo de luta, de força, de causas impossíveis.
Porque viver é impossível.
Porque viver é uma impossibilidade. Viver é uma anomalia, uma loucura, uma psicopatia. Ainda por cima, tentar ver o detalhe original, os fragmentos da existência dentro de um universo de mundos é, portanto, um abuso.
É um abuso dar importância ao existir no universo de todo infinito, a amálgama do tempo e espaços múltiplos. Nossa existência é mero grão do absurdo.
Eu sei, seu sei. É um abuso, mesmo assim, eu me recuso.
Recuso. Recuso a viver a uma existência cega, mesmo sabendo que, por mais que eu lute, minha cegueira será eterna. Por mais que eu mude, qualquer mudança será incompleta. E o fim é a única coisa certa.
Eu me recuso.
Talvez isso me acrescente vistas de carne. De dor. Talvez sangre. Por vezes, dói enxergar as coisas, ou saber que não poderemos vê-las, os olhos-coração não gostam de serem machucados. Mesmo assim, me recuso. Fazer o qué? Sou cega. Sou tola. Sou boba. Não quero, não permito e não serei cega, mesmo diante da névoa. Mesmo sabendo que um dia, meus globos oculares deixem de ver.
Eu quero vi-Ver.
Vamos trocar ideias?
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