Mar de telas — By SER HUMANO 2024

Lendas Urbanas — Telepáticos

Izabella Cristo
4 min readFeb 8, 2024

O ano é 2055. Mais conhecida como a Era da ausência de rostos.

Não existe mais feio ou bonito. Todo mundo é bonito. Ou esquisito. Ou bonito e esquisito. Não existe gente feia. Pelo menos não de verdade. Só pessoalmente.

As pessoas agora andam nas ruas sempre com cabeça meio abaixada, com andar até meio cabisbaixo, falando, sorrindo ou pensando. Sempre conectadas. Nunca sem direcionar o olhar num ângulo abaixo, por volta de 30 graus, a alguma tela ou celular na mão, ou de óculos de realidade virtual.

Já não existe a expressão “olhos nos olhos”, porque não precisamos mais tanto deles assim. Pelo menos não mais em plural. Mesmo com um olho, pode-se enxergar todo mundo. Já não se vê nada diretamente, mas sempre através de uma tela ou óculos. Todas nossas conversas são vídeo-chamadas. A indústria de órgãos de impressão 3D está em crise. Recorremos agora apenas aos casos graves, como transplantes de coração ou rins.

Nossos olhares são trocas de fotos. Imagens nas redes sociais ou pelo aplicativo, as quais nem sempre condizem com a realidade anatômica. Mas não importa. Todo mundo é bonito agora. Nossa realidade é a virtual.

Pode-se ter para sempre os olhos azuis que tanto se quis nas décadas passadas. Ou verdes. Ou laranjas. Sem ter que usar lentes de contato. Tudo começou com o piegas olho azul. Hoje as cores são difundidas, híbridas, confusas. Abriram a mente do ser humano. “Quem disse que não posso ter um olho vermelho ou roxo?”. Não preciso aplicar tinta. Teve a moda do olhar colorido, bi ou tricolor, porém já passou. O preço já foi alto no início, só que agora nem precisamos mais comprá-los. Basta configurar na tela-rosto e pronto! O par perfeito de bolotas das cores que desejar estará disponível.

Os olhos foram só o começo.

As mulheres mais anacrônicas quiseram logo mexer nas sobrancelhas. E nas bochechas. Logo veio a onda de maçãs do rosto. Depois os queixos. Mesmo os homens, no início relutantes, quiseram por bem refazer a barba, bigode, tirar pelos dali e colocar acolá, daquele jeito que só um Photoshop pode manter. Daí foi um passo para mexermos nos cabelos, nas unhas. Por que não no corpo?

Como a pessoa é, ou como nasceu, não importa. Não existe esse julgamento. Por que cargas deveríamos ser julgados e condenados por uma aparência genética, na qual não nos foi escolha, e sim imposta, apenas fruto de uma mera sorte ou azar de cromossomas?

A indústria cosmética começou a sentir o peso da desnecessária estética social. Perdeu campo para a indústria fotográfica e de programação.

Estamos finalmente vivenciando o avanço: a Era do não julgamento. Se for para criticar, que seja pelo que eu quero ser. Critique o meu eu almejado: o rosto da tela. Não pelo que fui obrigado a nascer.

Com a tendência natural da ausência de rostos, seguiu-se a difusão de encapuzados, sempre tem um grupo de revoltados e rebeldes, e logo a indústria percebeu a necessidade de um dispositivo que cobre o rosto verdadeiro completamente, para se evitar possíveis transtornos. Os óculos de realidade virtual acoplados eliminam aquela antiga necessidade de andar com a tela nas mãos. É a Modernidade chegando. Ainda está caro, mas é a tendência. Logo todos seremos como os antigos arcaicos chamavam o herói “Homens de Ferro”, falando com sua própria Jarvis, e mostrando para ao mundo apenas aquilo que quisermos ser. Com conexão direta ao Google. E em 3D.

Não pense que avançar foi assim tão fácil. Tivemos que lutar. Os mais velhos e antiquados muito relutaram em aceitar essas condições por um longo período de escuridão. Houve revoltas. Anos de manifestações. Insistiam em sair com a cara limpa e mais lavada, a caminhar pelo mundo. Trocavam olhares téti a téti. Pegavam em mãos. Assistiam a shows sem gravar, não tiravam fotos e registros dos eventos. Não se importavam mais com a cor dos olhos, desejavam a tolice de apenas ver olhos “de verdade”, que não fossem coloridos. O bom e velho castanho escuro tosco os encarando de frente. Gostos subversivos. Tem gosto pra tudo.

Alguns arcaicos estavam tão agarrados às suas rugas e antigas tradições que comandaram por vezes os círculos de rebeldia.

Graças a Deus, o movimento de Olhos nos Olhos não ganhou força, foi devidamente contido. À medida que as pessoas foram se adaptando aos dispositivos, telas relógios, óculos e chips cada vez mais modernos, os mais velhos foram encarando a dura realidade e finalmente se adaptando a ideia de sumir com algumas rugas. Afinal, que mal faz eu tentar ser mais jovem de novo?

Sabe-se que alguns círculos existem até hoje, astutos, ousados, mas são como maçonaria: secretos e contidos. Refreados, como devem ser. Não têm força. Nunca terão.

Todo mundo sabe que esse negócio de muita humanidade nunca deu certo. Bem melhor a virtualidade.

Finalmente, a paz e a modernidade foram instaladas.

Vamos trocar ideias de verdade?

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Written by Izabella Cristo

Me Escondo Aqui. Escritora✒️, Cirurgiã🔪Mãe👻,em relacionamento sério com as palavras. Livros: Vida Nada Moderna, Retratos da quarentena. www.izabellacristo.com

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