Sem crônicas – Transparente
Em São Paulo posso chorar.
Finalmente. Minhas lágrimas soltas com a liberdade que merecem, emanadas ao léu, podem desavergonhadas, correr livremente.
Posso chorar lágrimas gordas.
Daquele tipo que cai pesada pela lateral da asa do nariz até a boca. Do tipo que se enxuga com as costas da mão. Só com o indicador não dá, não cabe.
Em São Paulo posso chorar enquanto caminho, ando livremente, lamento a decepção, a falta de rumo, um luto, alguma perda.
Ninguém me interromperá o fluxo.
Ninguém vai me abordar, me tocar o ombro, me encostará num muro ou me fará perguntas retóricas, desnecessárias. Ninguém vai perguntar o que houve.
A vida tem suas regras e limitações, início meio e fim, é o vasto paradoxo, não se pode ter tudo. Todo mundo sabe. Em São Paulo, ora, posso chorar.
Só não posso, não posso devo andar devagar, corro o risco de ser, de imediato, atropelada por passos apressados. Sempre em frente.
Não posso tossir, sem chamar a atenção.
Não posso sorrir. Não, assim, à toa. Pra quê? Guarde esses dentes, querida.
Não posso parar, não posso.
Mas posso chorar. Pelo menos chorar eu posso. Me é permitido andarilhar como zumbi, olhos postos no celular, cervical curva, as lágrimas escorrendo da face em conexão direta com a gravidade, mais soltas, fofas, ah quanta água exuberante que lubrifica e aproveito para limpar a tela.
Se tiver pressa ou de saco cheio, posso dar a largada, correr de súbito, do nada, sair em disparada rumo ao desconhecido. Ninguém estranhará. É atraso, uma pressa, uma reunião. Não importa. Compreensível. Em São Paulo, urgência não necessita de explicação.
As lágrimas, ah essa água inconveniente, remela líquida de órbitas, são transparentes, mas em São Paulo, são mais, são invisíveis. O brilho da água, o cristalino rastro nas bochechas não diz nada. Não significa.
Finalmente, por Cristo, posso chorar em paz!
Que alívio, esse de poder chorar em público.
Minhas lágrimas a salvo, jamais serão reconhecidas.
Apenas água dos olhos, derramadas caídas de uma fonte viva.
Sem vida.
