Sem Crônicas – Sem concursos
Você pega a pasta bomba alergênica. Sabe que há de enfrentar as consequências deste ato insano, seus anticorpos anti-ácaro não são nem um pouco benevolentes, vão lhe cobrar a conta mais tarde. Já, já você sabota eles, se auto medica e toma um antialérgico. Vai valer a pena, há de valer.
Abre o fichário, umas folhas amareladas, outras quase brancas saltam, Cristo, pra que tanta organização fútil, texto e edital de cada concurso literário inscrito em cada umas das abas, desde os primórdios quando você decidiu pela nova onda da imperadora da escrita, você, louca, se inscrevia em todos os concursos literários gratuitos que podia.
Você não tinha ninguém que te lesse. Pudera. Você escondia seus poemas à uma chave tosca prateada no diário da Minnie diário com um cadeado que qualquer palito de dente abre, como se aquilo fosse um grande segredo, meu Deus, que medo de revelar tanto pensamento rimado, poético, sagrado.
Você escrevia como um homem. Queria ser um homem, na real, você era meio homem, porque os homens quem são os poetas, você escrevia poesias de mulherzinha.
Mentira, você escrevia poemas de homens. E quando você dava um pseudônimo masculino pra um poema fatídico, era certeiro, o poema entrava no cerco de ser publicado na coletânea desinteressada.
Você gostava da Cecília Meireles. Ela era mulher. Não compreendia Clarice, ainda, mas gostava também do Sabino sem saber que eram amigos. Aprendeu a rir com Veríssimo, o filho, aprendeu a cantar com Drummond. Você era poeta já, um pouco poeta, vai, sempre fora, sangravam palavras das suas artérias, assim riam suas coleguinhas mas ninguém nunca lhe ouvia, ninguém nunca lia, quem é que vai querer saber saber das suas veias e artérias entupidas de dor?
De repente as folhas estufam, você está mergulhada nos diversos papéis, nadam pelos seus olhos versões de (textos) pedaços você mesma. Riscos, rabiscos, vírgulas mal colocadas, frases inconcluídas.
Você está a revisitar seus micro passados, relembra cada texto editado e reeditado para um novo concurso, cada poema, cada página enviada na esperança de ouvir ressoar um me diga, me diga que um dia eu posso ser lida.
Pra que, Cristo, essa necessidade?
Você chega à uma conclusão:
Construção.
Revê as folhas, nota como cada um dos nãos seguiu adiante, mais riscos, mais médicos, mais texto. Páginas viraram um livro, cada crônica um capitulo, páginas viraram um livro, veja só, um livrinho premiado, quem diria, a menina do Norte foi lida por alguém lá do Sul.
Você se orgulha da construção, se envergonha de tamanha petulância, mas o que é um escritor senão uma alma ambígua e heterogênea?
Se lamenta e se apaixona e chega à mais uma conclusão, a que você não quer concluir nunca. Não quer chegar tão cedo no último texto, ainda deseja, quer aproveitar a vida, mesmo troncha, ainda quer derrubar e debulhar as palavras. Mas não quer mais ser homem, não agora. Também não quer ser mulherzinha. Você quer ser só a metamorfose.
Quer ser híbrida, incontida, emergência do paradoxo da existência, do jeito a que veio, do jeito que é, a polir a própria vida.
Você quer ser lida.