Sem crônicas – Louça suja

Izabella Cristo
2 min readFeb 29, 2024

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Se quiser impressionar, sempre que chegar em num novo lugar, me ouça: lave a louça.

Você pode levar um bouquet de rosas. Descalçar o salto alto. Deixar os sapatos do lado de fora. Ou batente da porta. Pôr seu sapato na devida sapateira, quando esta houver.

Chegar pisando leve, tímido ou retraído. Controlar seus instintos, aqueles velhos hábitos intrínsecos, os de falar palavrões, soltar uma piada molestada ou dizer asneiras. Contar a piada boa, ser divertido, descontraído. Não esconder as mãos no bolso. Dar a ponta de bom moço. Levar o mais caro dos presentes.

O anfitrião agradecerá contente. Esboça um sorriso. Exibe mais dentes que o preciso. Mas acredite, nada disso, meu amigo, será mais efetivo do que lavar a louça.

Quem lava a louça suja as próprias mãos. Doa algo precioso, mais do que objetos, doa esforço, suor e dedicação.

Não o faz necessariamente em benefício próprio. É pelo bem comum. Seja solidário ao anfitrião, seja ao conjunto da obra. Aquele o qual lhe abre a porta, o que lhe oferece a casa, mesmo que por momentâneo aconchego, senta aqui, um café, um suco, um prato de comida. Você celebra a refeição servida e a companhia.

Lavar a louça aciona a enzima da solidariedade.

Catalisa bondade. Mostra senso de comunidade. Demonstra zelo, respeito. O poder da Empatia. Carreia um trisco de humildade e de alegria, Ufa!, não tem nada na pia.

Não é tão difícil, vai. Basta ter água, pia, sabão e mãos ávidas por boa vontade.

Você pode fazê-lo de bolsos vazios. De coração preenchido. Sem sapatos de luxo.

Lavar a louça vai te inserir no micro daquela comunidade, você agora faz parte de um contexto, mesmo que por um breve instante.

Demonstra que você se importa. Que não é do tipo nó cego, egocêntrico, um Copérnico. Que está disposto a, no mínimo, não prejudicar, não deixar sua sujeira para outra pessoa lavar.

Naquela casa, você foi de alguma serventia.

Não se importou em servir, desejou ser útil.

Use as mãos. Enxágue o prato. Não gaste muita água. Abuse do sabão.

Na pia quente, na torneira gelada, no tanque. Nas pias de mármore ou nas biqueiras, me ouça, lave a louça. Seja na cozinha do empresário, na pia da bisa, da casa moça.

Lave descalço, de tênis, de salto.

Na casa do amigo íntimo, do inimigo, do amante. E mesmo que seja alguém distante, não tão próximo, lave a louça. A torneira já abrirá um fluxo para a amizade.

Por carinho, por mimo, por consideração. Por instantânea comoção, por caridade.

Por fim,

por obrigação.

Que seja.

Lave a louça.

Quem sabe assim, um dia, o chamem para uma nova refeição.

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Izabella Cristo
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Written by Izabella Cristo

Me Escondo Aqui. Escritora✒️, Cirurgiã🔪Mãe👻,em relacionamento sério com as palavras. Livros: Vida Nada Moderna, Retratos da quarentena. www.izabellacristo.com

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