POESIA — Reciclada
Às vezes eu só queria ser de vidro
Mas sou feita de acrílico
Plástico duro e seco transparente
Não sou cristal
Nada sou de metal
Nada de frio
Nada de correntes
Às vezes, só algumas vezes, queria ser eu de vidro
Estilhaçar os pedaços do meu umbigo
Espatifar-me ao chão
Estraçalhada como grãos
Só para dar um trabalhão para alguma vassoura cadente
Às vezes seria um boa serventia
Vestir uma capa de boa moça
Doula
Daquelas que nunca ouviu falar de rola
Às vezes, mas só às vezes
Eu queria ser era de vidro
Representar o perigo daquilo que é bonito
O brilho que pode cortar
Ou te dar sete anos de azar
Se você pressionar de maneira mais forte
Mas eu sou de acrílico
Copo plástico que veio do Norte
E ser cumbuca é a minha sorte
E minha sina
O manual de boa menina
Ficou na esquina da rua furada
Pegou chuva e está rasgado
Li algumas folhas ao contrário
E joguei o final lá pro fundo do armário
Para esquecer de fazer o inventário
Às vezes eu só queria ser de vidro
Beijar numa taça bocas ricas de vinho tinto
Mas eu sou feita de acrílico
Rebobino fitas
Me lavam, me secam
Me levam, me regeneram
Me usam de copo e me põem na pista dos aniversários
Reutilizam às escondidas
Para salvar o meio ambiente
Mas na hora do brinde
É o brilho do champanhe que incide nas mãos à frente
Eu ali, toda lavada
Arranhada e opaca depois de tantas buchas
Sobrevivendo no escorregador da velha pia
Até que um dia
Toda rachada
Cairei na lixeira
Sorte se for na das recicladas
Não custa, te dar aquela relembrada.
Eu sou feita de acrílico.
Não jogues em qualquer lata de lixo.
❤️
👏