Cronópios – Pedra sobre Pedra
Atirou com ausência de dó a pedra lascada na caixa de vidro do coração da moça, com toda aquela força que só tríceps de homem tosco pode lançar.
Colisão. Bateu-se. Risco, som.
A pedra quicou. O vidro trincado. Coração intacto. O vidro da redoma do coração da moça rachado, formando aquele olho estrelado de ranhuras brilhantes num suspenso estilhaço.
Céu rompido. Frágil equilíbrio. O hipócrita equilíbrio estático a manter o falso bem-estar fugaz das coisas, das coisas que quebram, das coisas que se quebraram, das coisas que se quebraram e irão desabar e num instante, desmoronar. O falso equilíbrio estático das coisas. Dos micro cacos de vidro. Entre os microns. A força entre micro cacos. Força. Entre mini.
A redoma ferida. Um olho que já nasce machucado.
“É a pedra da verdade!”, ele gritou.
Do lado de fora, a moça olhava paralisada.
Tomada de susto, seu coração agora batia acelerado, derramado de espanto como estava pelo súbito distúrbio. Mirava a cena com assombro.
Afinal, onde diabos estava o cérebro ao deixar-se tomar aquela decisão, deviam estar enfumaçados seus neurônios quando decidira colocar seu coração ali, naquela mesa de pedra da caverna, o coração maria-mole.
Fez redoma de vidro. Sabia já que aquilo não lhe protegeria por muito tempo. Ela só postergava o sofrimento.
Seu coração molenga, um rocambole de emoções servido assim, fatiado, daria pro gasto de uma boa refeição para aquele homem faminto.
A pedra da verdade quicou na redoma da moça e desapareceu no escuro da caverna aos pés do homem. Ele procurou, tendo visto nada, tirou do bolso do terno um isqueiro de prata e uma garrafa de cachaça.
Pôs-se a entornar o líquido em cima da redoma, bem no centro do trincado olho estilhaçado de vidro. Acendeu o isqueiro à altura dos olhos, sorrindo entre dentes borrados e tacou fogo, admirando cínico a chama.
“É o fogo da justiça!”, disse o homem, solene.
A moça sabia que o fogo tinha outro nome. Seu coração ainda batia, mais acelerado, desta vez sufocado, suando, porejando microgotas de luta em toda superfície.
A moça nem conseguia chorar.
Chamas. O olho trincado no teto da redoma aquecido foi-se derretendo devagar. Gotas de orvalho de vidro pingando ao centro sobre o coração, abrindo uma cratera no teto da redoma que se abria até as paredes, dissolvendo-se.
Doeu. A moça sentia o derramar de cada gota, o arder em lâminas quentes dentro do próprio peito.
Ajoelhou-se. Respirou fundo, procurou ar.
O homem admirava tudo com olhar de bruxa à beira do caldeirão.
Aos poucos o líquido derretido do vidro revestia o coração, que batia mais cada vez mais lento e se contraía mais vigoroso, encorajado. Um brilho dourado começou a reluzir das coronárias, e, depois da corrente sanguínea distribuída no miocárdio, no órgão inteiro.
De olhar arregalado, o homem estava mais branco que espanto.
A dor cessou. A moça apoiou-se com as duas mãos no chão de terra, pôs-se de joelhos, depois de cócoras. Permaneceu ali por alguns segundos, até tomar conta de que a dor não retornaria. Levantou-se.
Deu de cara com o olhar frio do homem, que olhou para ela, depois para o coração, novamente para ela. Como quem acorda para o mundo, de súbito, correu dois passos em direção à pedra e, afobado, tentou agarrar o coração.
Não conseguiu.
A moça já sabia, não se rouba coração assim pesado, não, não. Não se rouba. Nefasto homem.
O homem pôs as mãos à cabeça, penteou as têmporas. Desolado, desatou-se a chorar.
Lágrimas de arrependimento prateado caíram de sua face lavando desde o bigode até a barba grossa, até os pés. Lágrimas tantas, margeadas ao chão, banharam então aquela pedra, antes lançada, agora transformada numa pérola lascada.
O homem catou a pedra nova, admirando a luz polida do fragmento.
“É madrepérola”, esclareceu a moça indo em sua direção.
Ele recuou um passo. Diante do púlpito de pedra a moça pegou calmamente seu coração entre as mãos e o colocou debaixo do sovaco esquerdo, dando costas ao homem, rumo à saída da caverna.