Contos — O Navio
O navio está afundando.
Dentro dele, muita gente.
De todos os tipos. De todas as cores. De todas as correntes. De diferentes tamanhos e valores.
O navio está afundando.
Tem gente boa. Tem gente ruim.
O navio navega, tem gente que nega, mas o navio prossegue rumo ao seu fim.
O navio está afundando.
Bateu o casco. Algo furou. Um talho vesgo no que já era gasto, enferrujado de um grande navio embarcado.
No início, ninguém escutou.
Atribuíram aquele estranho ruído à um balanço de qualquer onda torta. Algo que para a gente que vive não importa.
Fez-se um buraco, um talho, uma rachada no meio.
Demoraram para perceber.
Muitos do navio continuaram seus passos como se a viagem fosse acontecer sem nenhum distúrbio. Chamaram os músicos. Saíram para jantar. Pediram saquê. Mal podiam prever o dilúvio que se passaria.
Toda tempestade se antecede de calmaria.
O navio está afundando.
Os primeiros marinheiros notaram. Começaram a lançar gritos. O capitão lá da popa, ignorou.
“Que marinheiros estúpidos! Que tanto grito por um furo!”
Mandou a ordem: vai lá e conserta.
Tem um buraco. Não é pequeno. Não importa agora de onde veio.
O navio estava cheio.
Os marinheiros do convés tentaram tapar a ruela. Não conseguiram. Vieram outros mais para ajudar. Lançaram mais gritos e apitos da popa.
Alguns ouviram, outros ignoraram. Outros ficaram sem ação.
O leme, sem rumo, rodeava tanto, que o navio parece que nunca teve direção.
O navio está afundando.
Subestimaram o tamanho do buraco e, quando se percebeu, a água já invadia todos os lados.
Aí que o povo finalmente percebeu que poderia morrer afogado.
O navio está afundando!
Deu-se o alvoroço.
Vai e vem de povo no convés. Onde é a saída? Onde estão os salva-vidas? Para que servem estes marinheiros?
Distribui os coletes.
Rebaixa os botes.
Quem vai primeiro? As mulheres? As crianças? Os velhotes?
Nos botes da sorte, a primeira classe sempre tem bilhetes premiados.
Alguns dos primeiros indicados se agarraram nos salva-vidas que compraram com o dinheiro nos calçados.
O navio está afundando.
A popa já está submersa. A quilha com o peso, partiu. Alguns desconfiam que nunca existiu.
O navio está fundando ligeiro. O caos vai então revelando cores dos passageiros.
Os de alma fina e doce, estão para os todos sempre cantando.
Os de alma azul e morna, estão para todos sempre rezando.
Os de alma verde e corajosa, direcionam e organizam o povo.
Os de alma fria e grossa, se escondem e aguardam seu lugar com encosto.
Os de alma negra correm, tentando, antes de descer, encher de joias e ouro os bolsos.
Os marinheiros tentam. Lançaram sinaleiras. Permanecem aos gritos. Alguns desistiram e choram. Calculam os botes que faltam. Veem os tantos que se afogam no mar gélido e vazio.
O navio está afundando.
Afunda para todos. Para os ricos. Para os moços. Para os tolos.
E não há preveja os sobreviventes do jogo.
O navio está afundando.
Afunda para todos. Todo mundo é igual.
Submergem com seu peso próprio, depois boiam no final.
O navio está afundando.
Afunda para todos. Para os a estibordo ou a bombordo.
Não importa de que lado veio quando se está morto.
O navio está afundando.
Afunda, mas tudo bem, porque mais além tudo acaba.
Até mesmo a mais árdua das batalhas.
Que assim seja. Amém