Leléo

Materna Idade — Olhos não mentem

Izabella Cristo

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Uma foto de uma moça grávida cruza minha timeline.

Uma foto linda. A moça tem cachos cor de fogo e um brilho de magia. Exibe sua barriga redonda, numa curva perfeita, entre um vestido curto de cetim esvoaçante.

Uma moça jovem e grávida.

A foto já está antiga, agora ela já é mãe, o mundo corre, sua bebê já tem um mês.

Fujo para qualquer canto, quero escrever sobre a foto. Pouso numa cafeteria.

Enquanto escrevo, ocupa uma das mesas um casal com uma bebê de 7 meses no colo, logo depois outra mãe com um pequeno de 10 meses. Eu bisbilhoto a conversa entre eles e os bebês, o casal e a mãe trocam algumas poucas palavras, não precisam de muitas delas, se olham, se comunicam sem voz, se reconhecem. Sabem das noites mal dormidas, do cansaço, dos fantasmas, do mero prazer de estar sentado numa cafeteria tomando qualquer coisa já pronta em um minuto de paz, para logo em seguida, essa paz ser destruída a qualquer momento pelo choro esganiçado, pela preocupação da vergonha e distúrbio alheio, pelas cobranças de olhares que não existem em fazer a coisa certa. O casal sai apressado, antes que sua bebê desate no choro, a outra mãe fica ali com o bebê resmungante aos seus pés, relutante, decidindo se deixa ou não deixa o filho engatinhar no chão que ela considera sujo para conseguir terminar de engolir o pão de queijo fresquinho com sossego, sem temer ser julgada por isso.

Jamais eu olharei pais da mesma forma. Depois dos filhos, passamos a entender melhor os humanos que nos criaram, passamos a compreender até os que não nos criam, passamos para o outro lado da forca. Estamos de repente na outra esquina, do outro lado da rua, somos vitrine, expostos, modelos de humanos com pedaços incompletos. Mas como eu sou modelo se falta uma perna, um braço, uma mão? Me falta às vezes até uma cabeça, eu sou um modelo rígido, não sirvo para todas as peças, nem todas as roupas me cabem. Sou assim, esse boneco de madeira incompleto, mas de repente, estou na vitrine de alguém, sou um modelo, tenho que ser o exemplo. Tenho que tentar fazer um outro boneco que não seja tão torto quanto eu, que talvez venha mais completo, que sirva para roupas diferentes. Que tal se ele tiver olhos? Que tal se colocarmos uma peruca, acrescentarmos um pouco de tinta, cor e vida? E se eu pintar sua madeira-pele, e se eu tentar lhe dar algumas articulações para que se mova, que gire os braços e pernas em novas poses?

Eu lembro da grávida, imediatamente pondero a nuvem de pensamentos dela enquanto pousava para a foto, quais eram suas expectativas, relembro das minhas próprias, do meu estado de espírito prévio ao parto, como eu estava antes de ter meu bebê. O quanto eu sabia, mas principalmente o quanto eu não sabia de algumas coisas sobre vida, o quanto não sei até hoje, e quanto de tudo mudaria. Quantas peças e estruturas se desencaixariam, quantas colunas e quadros mudariam de lugar.

Sou mãe. Me perdoem. Os que não tem filhos me perdoem a petulância, ou não me perdoem nada, porque as mães são assim, adquirem naquela sala de parto o poder da petulância, esse poder especial de leoa, que sabe ser maior até do que a petulância dos jovens. Os que não tiveram filho, seja por gosto, seja por jeito ou por opção sua ou dos outros, ou por falta delas, recito, ter um filho é uma experiência única e especial.

E eu sou mãe.

Ter um filho é comum, sim, mas é único, é diferente e igual. Mas muda. Algo muda. Algo nessa tarefa de criar um outro ser humano tem um gosto crasso, um reparo, algo de grande marco, fronteira, como também tem outras experiências, mas não têm. Ter um filho, te digo meu filho, tem esse clique de reconfigurar uma porção de massa humana perdida dentro da gente. O peso e a mola, o martelo e a bigorna, o a chave e a porta, não para os que nascem, mas para os que cria.

Ter um filho muda não a humanidade, muda os pais da humanidade, se eles permitirem isso. Ter um filho muda o presente e não o futuro. Muda a realidade, não a esperança. Muda o presente, o aqui e o agora, o futuro quem talvez mude sejam eles, as nossas crianças, mas nem sei se estaremos aqui para vê-las fazer isso.

Ter um filho muda a vista, os olhos, a direção. Muda a empatia. Nunca mais eu olharei para uma mãe com um bebê da mesma forma. Nunca mais eu pensarei na minha mãe do mesmo jeito. Nunca mais eu olharei para uma barriga grávida, bela e esguia sem conseguir pensar:

“Moça, algo na sua vida vai mudar”.

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❤️

👏😉

Vamos trocar ideias ?

“Moça, algo na sua vida vai mudar”.

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Izabella Cristo

Me Escondo Aqui. Escritora✒️, Cirurgiã🔪Mãe👻,em relacionamento sério com as palavras. Livros: Vida Nada Moderna, Retratos da quarentena. www.izabellacristo.com