Materna Idade — A Condenada

Izabella Cristo
3 min readOct 24, 2024

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Vou ser condenada a te amar.

Eu, logo eu, que não nasci nem preta, nem branca, nem toda índia. Vim vermelha.

Você, menino tão branco e bonito.

Nasceu sem sorriso, sem choro, meio murcho.

Você nasceu e eu não pude tirar logo uma foto do teu pé. Tive que esperar alguns dias até conseguir te tirar daquela incubadora.

Mas mesmo de longe, logo vi o defeito, tão branco que eras, que cor mais reluzente.

Desatenta. Eu não estava assim tão preocupada com isso, naquele momento não encarava minha condenação de frente, visto que outras coisas desimportantes ocupavam a minha mente.

Eu me preocupava com teu oxigênio, com teu peito, teu pulmão, tua saturação. Eu só queria saber de números, de peso, calculista como eu era. Cor, não, cor nunca me importou, ficava com raiva quando alguém questionava se realmente teria olhos azuis. Eu mal tinha visto teus olhos abertos. Foda-se a cor dos olhos, deixa eu levar o menino branco daqui, inteiro, pro meu berço. Pra minha casa.

Pobre condenada perpétua.

Eu não sabia, eu não sabia.

Sou culpada, pago pelo meu pecado de ter amado e copulado com o homem branco. Deus, como pode você assim, vermelha, querer misturar as cores da existência?

Só num lampejo de insanidade.

Vou ter que te aguentar. Vou ter que aguentar a vizinha te confundindo com a babá, te perguntarem que oras tu cuidas dele, como Deus, mulher assim tem filho tão bonito, foi feito com capricho, acertou em cheio. A mira do gozo foi perfeita, veio o espermatozoide branco.

Porque se fosse o contrário, se não tivessem cortado minha barriga e tirado você de lá, duvidariam. Estaria em xeque a tua descendência, a minha genética, a tua parentalidade, com certeza checariam os olhos do porteiro ou a cor do meu melhor amigo.

Talvez sussurrassem meu novo apelido, Capitu, Capituuuuuu. E eu seria talvez ainda mais condenada.

Tudo bem, eu aguento.

Às vezes cumprir minha pena é fácil. Doce penitência essa de te ver dar uma gargalhada, de ter que em tudo da vida fazer um combinado, ver teu bico, teu brilho, teu espanto, teu sorriso.

Mas vou ser condenada a te amar.

Eu, tão humana e mesquinha quanto eles, não me importo, porque prefiro esta condenação de ter que te amar e conviver assim contigo bonito, lindo, inteligente e branco, sem nenhuma doença, sequela ou limitação daquelas que logo cedo acometem os precoces.

Não tivestes sequelas.

Sou culpada por este alívio.

Eu as tive. Muitas. As tenho até hoje.

Coleciono cicatrizes, menino branco. Discorro a respeito delas, quanta ferida, quanto trauma esse de te fabricar trouxe, meu Deus, desse jeito, tão branco.

Não é moleza.

Não penses que será todo fácil pra ti.

Talvez seja pra ti um pouco menos turbulento, farei o melhor, mas sei que chegará o dia em que o mundo e eu iremos cobrar essa conta, ora se não vamos. Serei a primeira a te cobrar a conta dos teus privilégios, da tua consciência.

Por ora, menino branco, relaxe. Sorria. Brinque. Menino branco, seja apenas menino. Seja criança, brinque e ignore. Não acesse a maldade dos homens. Ignore a linguagem da ignorância, essa lambança que fazem com as cores, agora não importa.

Branca. Preta. Azul, vermelha, rosa. A própria vida há de te preencher com novas cores.

Eu, condenada perpétua, estarei aqui vestida, com minhas faixas pretas e brancas.

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Written by Izabella Cristo

Me Escondo Aqui. Escritora✒️, Cirurgiã🔪Mãe👻,em relacionamento sério com as palavras. Livros: Vida Nada Moderna, Retratos da quarentena. www.izabellacristo.com

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